O Reino Unido (RU) formalizou na passada semana a sua intenção de abandonar a União Europeia (UE), ao abrigo do artigo 50 do Tratado de Lisboa.
De entre outras definições teóricas (porque nunca foram usadas – é a primeira vez que um estado-membro o invoca), duas devem ser retidas desde já:
- o estado que sai tem dois anos para negociar um acordo de… saída (!)
- uma vez invocado, não pode ser suspenso… a não ser com um consentimento unânime de todos os estados-membros.
Parece, portanto, que é desta que o RU se vai embora. Será?
O impacto do Brexit no sector das tecnologias a nível europeu e até mundial já foi analisado, reanalisado, comentado e recomentado até à exaustão. E este exercício de verdadeira adivinhação permite opiniões para todos os gostos. Desde o “a UE agora é que vai florescer, com o sentimento de coesão que o Brextit provoca nos restantes estados-membros” até ao “a UE vai implodir, sem o RU”, ele há de tudo.
Ou seja, ninguém sabe nada.
O que espelha bem, por um lado, a complexidade da situação, e por outro a ineficácia da maior parte dos analistas políticos e económicos do mainstream.
Analisar uma questão sobre a qual não existe histórico, não há situação paralela, parecida, com a qual se possa criar uma linha de base e considerar variações é trabalho realmente para adivinhos. Ainda assim, alguns caminhos começam a parecer mais claros ou pelo menos possíveis. Tanto quanto poderíamos pensar que o RU sairia da UE ou que Donald Trump fosse eleito Presidente dos EUA!
Do meu ponto de vista, deveremos analisar alguns aspectos concretos inerentes à pertença de um estado à UE e no impacto que o Brexit poderá infligir ao sector das TI: a livre circulação de pessoas, a livre circulação de mercadorias, a livre circulação de capitais e por último, chamemos-lhe o “estado de alma” dos povos e comunidades do RU e da UE após as duras negociações dos próximos dois anos.
A livre circulação de pessoas
Aproximadamente 3.2 milhões de cidadãos de países da UE vivem actualmente no RU. Destes, 2.3 milhões trabalham (os restantes são dependentes destes, desempregados à procura de emprego, reformados, ou simplesmente vivem lá sem fazer nada).
Apesar da maior parte dos estudos feitos até há pouco tempo concluir que
- o impacto da imigração no desemprego no RU não se nota;
a pressão colocada no abaixamento dos salários não se nota;
existem posições no RU que têm de ser ocupadas por imigrantes, devido à falta de recursos técnicos devidamente formados;
esta foi uma das mais prováveis causas para o voto no “LEAVE” no referendo do Brexit. Estas três conclusões são transversais a todos os sectores económicos e as TI não são excepção.
A possibilidade de um trabalhador da área de TI obter um visto de trabalho no sector no RU após Brexit poderá assim não ser muito difícil; a necessidade vai existir e eventualmente, num efeito de procura / oferta desequilibrada, o salário vai ter tendência a subir (mantendo os restantes factores inalterados, que como de seguida se pode ver, não é uma certeza).
Já para as empresas do RU, o mesmo fenómeno provocará um aumento de custos laborais, mas essencialmente uma maior dificuldade em encontrar técnicos qualificados em quantidade compatível com as necessidades actuais e futuras.
A livre circulação de mercadorias
A livre circulação de mercadorias será outro factor decisivo e alvo de dura negociação nos próximos tempos.
Apesar dos responsáveis da UE, nos seus discursos, afirmarem que não está no seu pensamento fazer qualquer tipo de “chantagem” ou “pressão” ou até “castigo” ao RU pela ousadia de sair do clube Europeu, o certo é a livre circulação de mercadorias e respectiva isenção de taxas aduaneiras foi um dos primeiro previlégios de que as empresas benificiaram ao longo da história da UE.
A reposição de taxas aduaneiras e uma regulamentação muito mais “apertada” sobre mercadorias vindas do RU é mais do que provável que venha a ser um facto. Os danos à economia Britânica não são pura e simplesmente possíveis de avaliar neste momento, principalmente porque poderá haver (e quanto a mim haverá de certeza) uma deslocação das relações comerciais do RU para outros países não-UE, com a respectiva negociação de acordos bilaterais. Aliás, foi até já mais ou menos insinuado por alguns governantes apoiantes do Brexit que poderiam equacionar a negociação bilateral com alguns países da própria EU, cenário que prontamente foi rejeitado pela Comissão Europeia e pelo próprio Parlamento Europeu.
A livre circulação de capitais
Para além dos respeitantes às meras transacções comerciais, também os restantes capitais (investimento, especulação, transacções bolsistas, etc) vão ter restrições para passar o Canal da Mancha.
Economicamente, e no que respeita à área das Tecnologias, o impacto vai-se sentir mais profundamente nas empresas americanas que têm o RU como base de operação na Europa.
Apesar de quase todos os estados membros da UE legislarem de forma a atrair investimento estrangeiro (nomeadamente dos EUA e da China), as regras da UE nesta matéria têm vindo a dar passos sustentados em direcção a uma uniformização (e já não era sem tempo, digo eu) – veja-se o caso recente da Apple na Irlanda. E segundo recentes sondagens a painéis de especialistas e investidores, espera-se uma diminuição do investimento no RU com origem na EU (lógico) mas também, e mais importante, de países terceiros, nomeadamente EUA, com a respectiva mudança para outro país da UE.
Por outro lado, o impacto de qualquer diminuição de investimento vindo do RU para a UE será negligenciável, dizem os mesmos estudos. A dimensão relativa dos mercados representados pelo RU e UE ditam assim o destino de muitas empresas estrangeiras e, ironicamente, poderão ter um impacto bastante negativo no sistema fiscal Britânico.
O estado de alma pós-Brexit
É o factor mais incerto e quanto a mim mais perigoso de todos. Que a negociação do acordo de saída vai ser dura, ninguém terá dúvidas. Ontem, Nigel Farange no Parlamento Europeu disse “Vocês são uma máfia”, “O RU não cederá a chantagem de mafiosos”, sendo estas amostras de um escalar de discurso por parte dos nacionalistas britânicos que forçou em primeiro lugar David Cameron a convocar o referendo.
São muitos os factores que me levam a crer que o tom das negociações vai piorar. Desde logo, o tradicional nacionalismo do RU, reforçado pela posição geográfica, pela resistência a uma possível invasão na Segunda Guerra Mundial, pela opção de não fazer parte do grupo de estados de moeda única e, perante o contexto actual, da grande proximidade aos EUA.
Tudo isto, que por si só criou dificuldades na integração do RU na UE no passado, mas que são aspecto mais ou menos legítimos, acresce desde há uns anos um reforço dos nacionalistas-extremistas (de que o partido UKIP é o representante dentro do sistema, mas contra o sistema) e desta tiradas mais ou menos populistas de personagens como Farange e Boris Johnson.
Este sentimento extremado, para além de não ser bom para as negociações, poderá ter uma resposta por parte da UE, que muitos não estariam à espera, e que será a de aumentar a sua coesão, num cenário de “nós” contra “eles” que poderá muito bem ser a solução para uma Europa fraca e burocrática como tem acontecido até aqui. No entanto, muito rapidamente este discurso transbordará das mesas de negociações para a rua e o perigo do extremar de posições junto da população do RU e da UE é real. E nessa altura, os políticos terão obrigatoriamente de “seguir a rua”, tal como aconteceu após o referendo do Brexit.
Nigel Farange, foi lider do UK Independence Party (UKIP), principal dinamizador da opção “LEAVE” do referendo. É deputado ao Parlamento Europeu, onde protagoniza as mais duras declarações contra a UE.
Boris Johnson, Ministro dos Negócios Estrangeiros desde a reformulação após o referendo. Um grande apoiante do “LEAVE”.
Theresa May, a Primeira-Ministra do Reino Unido que, apoiando o “REMAIN” no referendo, vai liderar o governo nas negociações de saída da UE.
David Cameron, Primeiro-Ministro que, durante a campanha eleitoral que o levaram ao cargo, prometeu referendar a permanência do RU na EU. Fez campanha pelo “REMAIN”, perdeu e demitiu-se.
Especificidades na área das Tecnologias de Informação
Quase todas estas reflexões aplicam-se a qualquer área económica que quisermos analisar. Para além do efeito de rede que a economia tem nas Tecnologias e vice-versa (as empresas não-tecnológicas precisam das TI, as empresas de TI precisam de clientes), existem aspectos exclusivos desta área que serão directamente afectados.
É o caso, por exemplo da legislação sobre privacidade e concorrência. A UE é historicamente interventiva na regulação dos mercados e o das Tecnologias não escapa. A Microsoft foi obrigada a dar a opção de instalação de outros browsers que não o IE por omissão durante as instalações do sistema operativo Windows.
A Google foi obrigada a construir um mecanismo que permita retirar informação pessoal dos seus motores de indexação. Foi através de iniciativas de UE que os dois “gigantes” se renderam, coisa que o próprio governo americano não conseguiu fazer. Num mundo quase completamente ligado, o espaço ou território físico onde estão alojados dados e a permissão de acesso a estes é fundamental. Grandes empresas, nomeadamente do sector da banca e seguros, estão neste momento a planear a mudança dos seus Datacenters para fora do RU.
Outro caso é das Startups tecnológicas. O efeito de massificação é fundamental neste tipo de empresas, que criam soluções para demanda ainda inexistente. A adopção massiva dessas soluções depende directamente da dimensão do mercado e com o Brexit, seja como for, o mercado alcançável a partir do RU diminui. No entanto o mercado alcançável pelos membros de UE sofrerá uma alteração muito menor, mesmo se contássemos com uma total falta de acesso ao mercado britânico.
Impacto negativo será maior para o RU do que para a UE
Estes quatro aspectos guiarão os dois lados da negociação até ao acordo final. É cedo, muito cedo, para sequer apontar alguns pontos que podem até parecer simples. Tudo será negociado e numa dada altura tudo servirá como arma e munição.
Li algures que uma frase que ficou marcada na minha cabeça, e que infelizmente não retive a fonte. Dizia mais ou menos: “É como um casal que está com uma gravidez de três meses dizer ‘até agora não houve impacto deste bébé no nosso estilo de vida’. O RU está “grávido” de 3 meses. Ainda não sentiu o bébé. Mas que o seu estilo de vida vai mudar, podemos ter a certeza.
Nas Tecnologias de Informação, tudo anda rápido. E também a reacção aos resultados do referendo ao Brexit não se fizeram esperar. Um exemplo: a vereadora para a Economia e Tecnologia da cidade de Berlim, contactou “dúzias de startups Britânicas, bem como multinacionais com sedes EMEA no RU, resultando na abertura de pelo menos 60 contactos “sérios” sobre deslocação destas empresas para a capital alemã”. Se Londres foi o contraponto europeu ao Silicon Valley nos últimos anos, agora Berlim vai tirar-lhe o lugar, por certo. E novas oportunidades surgirão para outras cidades como Lisboa e Dublin, sobre as quais já se tem falado como destino de uma fuga de Londres.
Outro sinal, foi a retirada voluntária por parte de profissionais da EU das suas candidaturas a posições no mercado de trabalho do RU, muitos dos quais já em fase final. O argumento usado foi: “não quero vir para cá trabalhar, pois não sei se o poderei fazer daqui a dois anos”.
Os próximos dois anos vão refundar a Europa, a UE, as relações externas do velho continente e a economia mundial. O Brexit aparece numa altura em que os EUA atravessam uma fase das mais críticas e imprevisíveis da sua história, fruto da eleição de Donald Trump e do arregimentar de nacionalistas, extremistas, especuladores financeiros e outros personagens sem qualquer sentido de estado para a sua administração. Tudo isto em simultâneo ainda com o ressurgimento (que a bem da verdade anda a ameaçar acontecer há já alguns anos) de políticos de extrema-direita, nacionalistas, xenófobos e com concepções de Europa que não passam pela existência de uma UE.
Serão tempos difíceis estes, para os que acreditam que o mundo deverá esbater fronteiras e não as fechar.
Resta-nos o facto de isto tudo estar a acontecer numa altura em que, fruto das Tecnologias de Informação, todo o mundo está ligado, todos sabemos tudo, e todos podemos agir. Se o Brexit tiver impacto no sector das Tecnologias de Informação, acredito também que esta minha “tribo” saberá reagir e contribuir para atenuar o isolacionismo seja de quem for.
Mapa político digitalizado de um antigo mapa sobreposto a fotografia orbital
Links com mais informações
https://en.wikipedia.org/wiki/Treaty_of_Lisbon
https://en.wikipedia.org/wiki/Brexit
http://www.economist.com/Brexit
http://www.cnbc.com/brexit/
http://www.computerweekly.com/opinion/Brexit-and-technology-How-network-effects-will-damage-UK-IT-industry
https://www.theguardian.com/politics/2017/jan/24/uk-tech-industry-not-immune-to-brexit-trade-group-warns
https://www.theguardian.com/business/2016/nov/21/google-facebook-brexit-uk-technology-sector-skills
http://www.pwc.com/us/en/brexit-us/technology.html